Filho do 25 de Abril

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domingo, agosto 21, 2005

532. Socialismo, Burguesia e ... maneiras à mesa, segundo George Orwell



“Uma pessoa de classe média adere ao socialismo e talvez até ingresse no Partido Comunista. Que diferença concreta faz isso? Obviamente, vivendo no quadro da sociedade capitalista, tem de continuar a ganhar a vida, e não o podemos censurar se se apegar ao seu estatuto económico burguês. Mas notar-se-à alguma alteração nos seus gostos, nos seus hábitos, na sua maneira de pensar – na sua ‘ideologia’, segundo o jargão comunista? Dar-se-á alguma mudança, excepto passar a votar trabalhista ou, quando possível, comunista? Nota-se que continua a conviver com os da sua classe; sente-se muito mais à vontade com um membro da sua classe que o considera um perigoso ‘comuna’, do que com um membro da classe operária que supostamente concorda com ele; os seus gostos em matéria de alimentação, vinhos, roupas, livros, arte, música, ballet ainda são gostos reconhecidamente burgueses; e o mais significativo é que se casa invariavelmente na sua classe. Veja-se qualquer socialista burguês. Veja-se o camarada X, membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha e autor de O Marxismo Explicado aos Bébes. Acontece que o camarada X estudou em Eton. Estaria disposto a morrer nas barricadas, pelo menos em teoria, mas reparem que ainda deixa desabotoado o último botão do colete. Idealiza o proletariado, mas é impressionante verificar até que ponto os seus modos são diferentes dos do proletário. Talvez tenha, por mera provocação, fumado um charuto sem lhe retirar o rótulo, mas ser-lhe-ia quase fisicamente impossível levar à boca bocados de queijo espetados na ponta de uma faca ou manter o chapéu posto dentro de casa, ou até sorver o chá do pires. Talvez as maneiras à mesa não sejam um mau teste de sinceridade. Conheci muitos socialistas burgueses, ouvi-os discursar durante horas contra a sua classe e, no entanto, nunca, mas nunca, encontrei um que tivesse adoptado as maneiras dos proletários à mesa. E contudo, no fim de contas, o que os impede? Por que razão um homem que está convencido de que o proletariado reúne todas as virtudes se dá ao trabalho de comer a sopa sem fazer barulho com a boca? Só pode ser por, bem no íntimo, pensar que as maneiras dos proletários são repulsivas. Assim se vê que ainda continua sob a influência do que aprendeu na infância, quando o ensinaram a odiar, temer e desprezar a classe operária.”

O Caminho para Wigan Pier – George Orwell

16 Comments:

  • At 12:53 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Boa escolha! Claro que Orwell sabia do que falava, caso contrário não teria sido tão directo. O socialista do "faz-de-conta" não será idêntico ao puro "faz-de-conta" das convicções políticas, em geral? Pergunto-me se nos tempos que correm há por aí verdadeiras convicções... Um abraço

     
  • At 1:09 da tarde, Blogger Ricardo said…

    Viva Savonarola,

    O que achei estranho neste livro do Orwell, que ainda não acabei de ler, é a facilidade com que ele defende algo e o seu contrário. Também é, ao mesmo tempo, progressista nas ideias e conservador noutras (as convicções políticas e sociais também ficam depressa datadas).

    Quanto à pergunta que fazes preciso mesmo responder? Que nos move hoje em dia, individual e colectivamente? Onde estão as utopias?

    Abraço,

     
  • At 2:36 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Viva Ricardo

    Obrigado pelos simpáticos comentários no Hollywood e pelas visitas regulares. Eu também, obviamente, venho cá picar o ponto todos os dias, encantando-me com as fotos de cidades deslumbrantes que ainda não visitei (Praga, Viena e Budapeste tão no topo da minha lista) e com os artigos que vais escrevendo, desde os textos dedicados á "res publica" passando por estas análises de obras fundamentais, como é toda a bibliografia do Orwell.
    um abraço e continua o notavel trabalho. Este é um blog onde o vale a pena visitar não basta ser pensado para dentro. Tem que ser dito.

    Miguel

     
  • At 3:28 da tarde, Blogger mfc said…

    Uma análise brilhante de quem sabia bem o que dizia...

     
  • At 6:50 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Un erro comum é pensar em George
    Orwell como tendo um pensamento de esquerda, devido á premonição do totalitarismo.
    Era um democrata no sentido em que é impossível sê-lo.
    Explico:para justificar a sua participação na Guerra Civil de Espanha, disse que "apenas quero ser uma pessoa decente".
    A decência militante deve ser um dos mais sacrificados exercícios para um homem.
    Importante, também, penso eu, é ter sido Policia, uma profissão que a par dos sacerdotes cristãos,
    dá um singular e apurado conhecimento dos homens.

     
  • At 7:01 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Bem visto... Basta ler "1984" ou "O Triunfo dos Porcos" para se perceber que George Orwell não era propriamente um anti-comunista primário, mas um anti-comunista bem lúcido. E neste texto, que não conhecia, volta a demonstrar o mesmo. Quanto ao fim das convicções e ideologias, há que buscar novas. Sem sectarismos, porque se calhar a solução até está à direita. Pelo menos, numa nova direita.

     
  • At 8:06 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Bravo George! Sempre igual a ti próprio.

    Bravíssimo Ricardo! Não estará subliminarmente implícito neste trecho da Obra de Orwell, qualquer coisa que acontecerá pelos inícios de 2006, no Reino da República Popular Laica de Portugal?!

    Senão vejamos, tapemos os olhos ou baralhemos os neurónios.

    - Temos um socialista rico, riquíssimo, de apelido Nobre, que não come bolo-rei como um roedor serrano algarvio.
    - Temos um algarvio bastante mais modesto de carteira, não tem nenhuma Fundação, mas comporta-se aristocraticamente, salvo alguns imprevistos, até que a Nestlé lhe oferece viagens para assistir a uma ópera na Áustria. Bravíssimo… encore!
    - Continuamos a ter um “Senador” laico, com uma esposa, agora, menos laica, mas também socialista, que veste bem, tem a mesma modista que a rainha da Suécia, sabe o que diz e distribui charme por onde passa.
    - Continuamos a ter um trepador de palmeiras, que só vê números e mais números, de socialista não tem nada, casado também com uma Maria, que veste muitááá mal, corrige o esposo em público e em visitas oficiais, nos liberais países nórdicos espanta-se por emigrantes portugueses falarem português. Belíiiisssiiimooo!!!
    - E ainda continuamos a ter um republicano, que se passeou montado em elefantes, tal e qual um Marajá, esborrachou tartarugas nas Seychelles, deu voltas ao mundo, à custa do erário público, mas sempre a convite das autoridades desses países, que viam neste homem bochechudo, alguém com peso internacional e digno de crédito.
    - E ainda continuamos a ter um obscuro Economista Economicista Tecnocrata Kenesyano, de fisionomia de maus fígados em parelha com a indigesta cara metade, que de tão importante que era necessitava de Guarda-costas nas portas das salas de aulas, não fosse algum aluno mais atrevido questionar-lhe o porquê do inteligente do seu marido não saber quantos Cantos tem os Lusíadas, ou que Thomas Moore e Thomas Mann, não são a mesma pessoa, nem parentes, nem viveram na mesma época. Fantásticoooooo!
    - Continuaremos a ter um Republicano, Socialista e Laico FIXE, que faz alguma confusão com os números, mas não tanto para nos ter livrado da banca rota por duas vezes, que do alto dos seus 80 anos, já deu muito e muito tem a dar a este burgo atulhado. É um monumento vivo de Portugal e em muito melhor estado do que os restantes monumentos nacionais.
    - Continuaremos a ter um …, que foi fazer a rodagem do carro a um congresso, saiu líder de um partido, foi 1º Ministro, Portugal viveu a sua Idade das Trevas moderna e que merece um lugar na história, ao lado das negras estatísticas dos seus Governos, como o Homem do Leme, que mais água meteu no barco em tempo de bonança.

    Paz e sossego à sua alminha,
    Na companhia da sua familiazinha,
    Na sua casinha de Boliqueime,
    Para que ninguém mais se queime.

    É a minha mais sincera homenagem a tão grandioso e esguio homem.
    O meu X irá para o Marocas.

    Ó Senhor Guarda desapareça…

     
  • At 1:39 da manhã, Blogger Ricardo said…

    Miguel,

    Apesar das “absurdas” polémicas que andam a agitar a blogosfera, convém não esqueceres que o que é importante é continuares a fazer o teu trabalho com prazer. Só assim podes continuar a destacar-te pela positiva!

    O meu blogue anda em regime de piloto automático mas, em breve, regressa à normalidade e em força. Obrigado pelas palavras simpáticas,

    Abraço,

     
  • At 1:41 da manhã, Blogger Ricardo said…

    mfc,

    O que este livro tem de mais interessante é a desconstrução que Orwell faz... de si mesmo. Defende algo e sublinha que tenta fazer mas que nem sempre consegue. Depois defende o seu contrário porque está sempre a questionar tudo.

    Abraço,

     
  • At 1:48 da manhã, Blogger Ricardo said…

    C. Índico,

    Nesta fase da sua vida (1937) o seu pensamento é de esquerda. Aliás o livro foi encomendado por um Clube Socialista Inglês. Claro que Orwell não deixa de ser lúcido e sempre crítico, ainda mais consigo próprio. Quem encomendou este livro teve mais do que queria...

    Engraçado referires a sua profissão de polícia. Ele diz, ainda neste livro e cito:

    "Ao fim de cinco anos na Indian Police, odiava o imperialismo e cumpria as minhas funções com uma amargura difícil de explicar."

    E acrescentava depois:

    "Quando em 1927 regressei de licença, já estava meio decidido a abandonar aquele emprego, e uma simples lufada de ar inglês firmou-me na minha determinação. Não voltaria a fazer parte daquele despotismo funesto."

    É impressionante a sua exigência em relação a tudo, a sua coragem de enfrentar os seus, a sua luta pela decência (como muito bem referiste)... talvez por um enorme sentimento de culpa por tudo o que fez e não fez (as descrições da falta de auto controlo que teve como polícia também fazem parte da sua escrita)...

    Abraço,

     
  • At 1:57 da manhã, Blogger Ricardo said…

    Bravo,

    Exactamente. Sempre crítico, sempre a lutar por princípios, nunca seguidista.

    Apesar de tudo isso algo "escureceu" o seu passado recentemente. Descobriram-se provas (aceito como credível o que li) de que denunciou camaradas. Uma nódoa no currículo deste homem incontornável da literatura política...

    Discordo que os novos ideais que bem necessitamos para (re)descobrirmos o nosso rumo surjam do pensamento político tradicional (que separa esquerda e direita), uma vez que as ideias e ideais estão gastos e expostos. E muito menos acredito numa "nova direita" uma vez que o mundo já vive mais à direita do que alguma vez viveu. A globalização actual funciona com pouca ou nenhuma influência de instituições supra nacionais. Há uma nova forma de liberalismo. E não me parece que isso esteja a criar entusiasmo e a criar as utopias que os habitantes do mundo necessitam para dar sentido às sociedades. Mas sobre a globalização falarei com mais pormenor no regresso a 100% a estas lides da política...

    Abraço,

     
  • At 2:01 da manhã, Blogger Ricardo said…

    Anónimo,

    Estavas inspirado e foste buscar ao fundo do baú das memórias um conjunto bem diversificado de situações caricatas que os salvadores da pátria passaram. Diverti-me bastante a recordar os "pecadilhos" da burguesia. Mas vais-me concerteza perdoar porque de Presidenciais vou escrever um artigo de fundo em breve e vou guardar uns comentários para essa altura. Nesse momento vou repescar algumas das farpas que aqui deixaste para abrilhantar a discussão!

    Abraço,

     
  • At 4:07 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Além de outras coisas, queria dizer " Keynesiano " e não " Kenesyano ".

     
  • At 7:48 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Anónimo:
    -Tens um caderninho (fisico ou virtual) onde apontas esse ror de acontecimentos alucinantes desta pobre pátria, ou é só memória pura?
    -É que ri á gargalhada, coisa rara em mim, com o texto.
    Vamos esperar pelo Ricardo, e pelo RAAAAAAIIIIIIIIO, para falar de presidênciais.
    -Já agora, se o Mário adoecer e renunciar não é Jaime que vai para Presidente ? O Coelho tem cá uma cabecinha!

     
  • At 8:52 da tarde, Blogger Ricardo said…

    C. Índico,

    O texto (e a analogia) estão mesmo engraçados...

    Quanto ao Jaime Gama isso parece-me uma teoria da conspiração. A substituição seria ou não, segundo a Constituição, temporária? Tenho que ir espreitar...

    Abraço,

     
  • At 10:38 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Ricardo:
    Está-me a parecer que as competências do PR são algo não precisamente definido.
    Mas acrescento que não sei se é mau ou bom.
    Já agora que falámos em Decência, o Santana ter sido despedido.....foi patriótico.

     

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