756. Páginas Soltas (19): As Intermitências da Morte, de José Saramago
As Intermitências da Morte - José Saramago
“No dia seguinte ninguém morreu.”
Num certo dia a morte deixou de matar. Deixou de matar num pequeno país de 10 milhões de habitantes que só não é Portugal porque é uma monarquia com um Rei pouco influente (ou será?). Um acontecimento desta natureza veio mudar tudo e o que antes desejávamos ardentemente tornou-se num pesadelo. A religião, a filosofia, a política, a economia... tudo deixou de fazer sentido ou o sentido passou a ter que ser outro. Nunca desejes o que não queres mesmo ter porque pode mesmo acontecer, já diz a sabedoria popular.
“Eram três horas da madrugada quando o cardeal teve de ser levado a correr ao hospital com um ataque de apendicite aguda que obrigou a uma imediata intervenção cirúrgica. Antes de ser sugado pelo túnel da anestesia, naquele instante veloz que precede a perda total de consciência, pensou o que tantos outros têm pensado, que poderia vir a morrer durante a operação, depois lembrou-se de que tal já não era possível, e, finalmente, num último lampejo de lucidez, ainda lhe passou pela mente a ideia de que se, apesar de tudo, morresse mesmo, isso significaria que teria, paradoxalmente, vencido a morte. Arrebatado por uma irresistível ânsia sacrificial ia implorar a deus que o matasse, mas já não foi a tempo de pôr as palavras na sua ordem. A anestesia poupou-o ao supremo sacrilégio de querer transferir os poderes da morte para um deus mais geralmente conhecido como dador da vida.”
José Saramago é conhecido por introduzir um acontecimento improvável, fantástico ou irreal logo no início da narrativa e depois simplesmente descrever as alterações no quotidiano num homem, numa mulher, em vários ou várias, numa família e nos seus cães. O acontecimento fantástico tem continuado, nas suas obras mais recentes, presente mas estas, na minha opinião, não têm sido brilhantes ou porque não consegue descolar da ideia original – O Homem Duplicado - ou porque prefere insistir em retratar a população em vez do velho e do seu cão (personagens recorrentes da sua obra) – Ensaio sobre a Lucidez.
“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. (...) Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou coisa nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta.”
“... a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.”
“Numa aldeia qualquer, a poucos quilómetros da fronteira com um dos países límitrofes, havia uma família de camponeses pobres que tinha, por mal dos seus pecados, não um parente, mas dois, em estado de vida suspensa ou, como eles preferiram dizer, de morte parada. (...) Nisto estávamos, nem para a frente, nem para trás, sem remédio nem esperança dele, quando o velho falou, Que se chegue aqui alguém, disse, Quer água, perguntou uma das filhas, Não quero água, quero morrer, Bem sabe que o médico diz que não é possível, pai, lembre-se que a morte acabou, O médico não entende nada, desde que o mundo começou a ser mundo sempre houve uma hora e um lugar para morrer, Agora não, Agora sim, Sossegue, pai (...).”
Esta obra é uma das suas melhores obras dos últimos tempos mas, escusado será dizer que na minha modesta opinião, longe de obras primas como o Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Ensaio Sobre a Cegueira, entre outros. Saramago dedica grande parte da narrativa a descrever os acontecimentos nacionais que se revelam algo desinteressantes como a história da “Máphia” e dos vigilantes da fronteira. Começa a ser uma regra que eu não consigo gostar sobejamente. Só a espaços introduz personagens “comuns” onde verdadeiramente consegue distinguir-se com mérito da generalidade dos escritores.
Mesmo assim não é de menosprezar a sua reflexão sobre a vida, sobre a sociedade, sobre os nossos valores, sobre como tudo é frágil, sobre o papel das religiões, sobre a relação destas com o Estado. Este livro é, acima de tudo, uma reflexão actual sobre a sociedade que construímos. E é mais assustador apercebermo-nos do que nos aconteceu que a morte.
“Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.”
Mas para quem tem saudades do velho e do seu cão o livro reserva-nos uma agradável surpresa. A parte final do livro, que por razões óbvias não vou descrever em pormenor, é do melhor que tenho visto Saramago escrever, dito doutra forma, é Saramago vintage. A morte regressa mas não da forma que todos estávamos à espera...
Por tudo isto, e muito mais, é uma leitura recomendada por este espaço!
Memórias do Filho do 25 de Abril: Literatura (todos os textos deste blogue sobre literatura)
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15 Comments:
At 5:29 da tarde, Anónimo said…
Acabei, há instantes, de o ler. Não li um livro, li dois livros: uma crítica social baseada na ficção da abolição da morte e um romance em que o amor vence a morte. Ambos bons, embora tenha lido com muito mais interesse o primeiro.
At 5:58 da tarde, Ricardo said…
Viva Henrique,
Eu gostei mais, do ponto de vista literário, do "segundo livro"! Só porque não gosto tanto de Saramago quando este fala da sociedade como um todo sem personalizar. Mas é verdade que a primeira parte é mais "filosófica", que tem mais "crítica social"! aliás a maior parte das citações são da primeira parte!
Abraço,
At 6:21 da tarde, Anónimo said…
E gostei sobretudo da crítica às pessoas, a como nos movemos todos por egoísmo, o "baixo materialismo" como ele lhe chama. A fábula da tigela está espectacular, não a conhecia.
At 6:36 da tarde, Ricardo said…
Henrique,
Assino por baixo quando destacas a fábula da tijela. Não coloquei o excerto por ser algo longo mas é algo a ter em consideração quando reflectimos sobre a vida!
A crítica às pessoas e à forma como estas vivem e se organizaram é mordaz. Faz-nos ficar deprimidos com o que vemos à nossa volta...
Mas, repito, foi pena tanto espaço dedicado à "Máphia" e a outras questões políticas processuais.
Abraço,
At 6:37 da tarde, Politikus said…
Ando para ler este livro há algum tempo. Mas Saramago irrita-me com a falta de pontuação... mas depois da tua critica, acho que vou ler.
At 6:39 da tarde, Ricardo said…
Polittikus,
A "falta de pontuação" e a maneira "original" como Saramago escreve é uma questão de hábito. Detecto em Saramago falhas bem mais graves do que essa em alguns dos seus romances (não conseguir descolar duma ideia, descrições muito apuradas, entre outras).
A escrita, dizia, é uma questão de hábito que, após essa habituação, dá mais ligeireza à narrativa, sem os limites das regras formais da escrita!
Abraço,
At 6:40 da tarde, Fernando said…
ando com o livro no "bolso" e ainda não li mais que a primeira página. Fiquei com mais vontade de o ler depois de ler os V. comentários.
At 6:43 da tarde, Ricardo said…
Fernando,
Os gostos não se discutem e é difícil recomendar tudo cujo prazer é baseado nesses mesmos gostos, sem falar no estado de espírito das pessoas no momemnto em que "consomem" os livros.
Mas, na minha opinião, Saramago, que tem estado desinspirado nas últimas obras, faz-me lembrar, com este livro, a sua melhor fase. Mas não é um livro isento de falhas e, a espaços, falha no rumo.
Abraço e boa leitura,
At 9:33 da tarde, Anónimo said…
Continuo a digerir o livro, há agora a interpretação subjectiva de cada um, as coisas que nós lemos sem que o autor, necessariamente, as tenha pensado. Depois também há o que ele pensou e que nós não captámos logo, podendo uma nova leitura dos trechos menos claros ajudar a compreender.
Mas não posso deixar de recomendar, vivamente, a leitura. Até porque o inconsciente colectivo nos leva, de uma forma geral, a pensar na morte. Até eu, no meu Implacável Tempo, Jim Morrison com o seu célebre "Ninguém sai daqui vivo!". Começa a achar-se que a maldade de nada vale perante o inegável: todos vamos morrer. A morte (com letra minúscula) e o tempo (também com letra minúscula, achei um piadão porque também faço essa distinção) são implacáveis, a não ser que...
A não ser que mudemos radicalmente o nosso modo de pensar a VIDA!
At 10:34 da tarde, armando s. sousa said…
Olá Ricardo,
Li e não gostei.
Li toda a obra de José Saramago, e desde alguns anos a esta parte, quando leio um livro dele, dá-me a sensação do "dejá vu".
Um abraço.
At 10:52 da tarde, Ricardo said…
Henrique,
As "nossas" vidas são tão vazias de tantos pontos de vista que, de facto, constatar isso é constatar a já ausência de VIDA. Mas também o que é viver, o que é preencher a vida, o que é e o que não é uma perda de tempo?
Abraço,
At 10:53 da tarde, Ricardo said…
Armando,
Também ando com a sensação que Saramago não está numa das suas melhores fases. Isso também nota-se nesta obra mas que considero, mesmo assim, ser melhor que as imediatamente anteriores.
Abraço,
At 3:00 da manhã, a.castro said…
Concordo em absoluto com o comentário do Henrique das 9:33PM. E quase diria ser "imperioso" fazer uma 2ª leitura de todos os livros de Saramago. Sei que, há pouco tempo, Saramago, em pessoa, dirigiu uma palestra (acho que num colégio) cuja plateia era constituida por jovens. Estes faziam perguntas, Saramago respondia. Uma das coisas que retive recuava ao tempo da sua juventude, tendo confessado que dos primeiros livros que lera nada tinha percebido (em "tradução livre", direi que é preciso treinar e ganhar experiência para compreender). Outra coisa que retive tem a ver com a explicação dada à plateia sobre o estilo de escrever. Foi mais ou menos assim: as pessoas falam sem vírgulas, sem pontos-finais, etc., então a certa altura inventei um tipo de escrita em conformidade. Quando comprei As Intermitências da Morte tive a sorte de encontrar um dos dois ou três livros mais antigos que venho procurando, O Ano da Morte de Ricardo Reis ( que seguiu ao Memorial do Convento) que começarei a ler dentro de dias.
Para terminar, um pequeno detalhe relativamente à obra em análise. Em determinado ponto da narrativa, Saramago introduz uma curta passagem "retirada" de outra obra excelente, Todos os Nomes, quando compara os registos ou verbetes da morte com os registos mais tradicionais dum certo Conservador. Só quem leu Todos os Nomes poderia ter percebido a alusão.
De resto não sou "esquisito" e gosto de tudo que li do Saramago: Os Apontamentos, Manual de Pintura e Caligrafia, Objecto Quase, Levantado do Chão, Memorial do Convento, A Jangada de Pedra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes, A Caverna, O Homem Duplicado, Ensaio sobre a Lucidez, - a que se vai juntar O Ano da Morte de Ricardo Reis. Evidentemente que há obras emblemáticas, como em todos os escritores.
At 5:09 da tarde, Ricardo said…
A. Castro,
Também gosto de Saramago. Simplesmente fiquei desiludido com os dois livros anteriores a este. O Homem Duplicado era chato e não saía do sítio e o Ensaio à Lucidez era megalómano e desinteressante.
O estilo de escrita é, como referi anteriormente, ágil e permite sair dos formalismos arcaicos da nossa bonita mas pesada língua.
Depois de ler mais 3 livros vou retomar ou recomeçar o Ano da Morte de Ricardo Reis, uma das minhas falhas em Saramago.
Abraço,
At 10:52 da tarde, Anónimo said…
Li o livro há cerca de duas semanas e continuo a remoê-lo dentro de mim... A segunda história é tão irreal que não consigo perceber o que está implícito. Porque algo tem que haver, não pode ser apenas uma história de amor...
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