(284) Páginas Soltas (8): O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago
“Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher.”
Antes de analisar a obra em si, vou comentar a polémica que este livro gerou em Portugal à data da sua publicação. O que para mim é grave é insultar, proferir palavras de ódio ou denegrir alguém. Ter um olhar desassombrado sobre um tema não me parece grave! Há muita coragem nesta obra e muitas pequenas provocações mas nenhuma delas é particularmente insultuosa! Há ainda espaço para várias interpretações. É óbvio que a linguagem utilizada é de pouca veneração, mas isso só engrandece a obra dando-lhe realismo.
“Ainda o último eco da tremenda afirmação vibrava nos ouvidos de Jesus quando Pastor, agora num tom de falsa naturalidade, voltou a falar, Escolhe uma ovelha, disse, Quê, perguntou Jesus desnorteado, Digo-te que escolhas uma ovelha, a não ser que prefiras uma cabra, Para quê, Vais precisar dela, se realmente não és um eunuco. A compreensão atingiu o rapaz com a força de um murro.”
Saramago conta a história de Jesus Cristo como se este fosse apenas um homem comum, com desejos e ansiedades. A divinização deste homem não é nem o objectivo nem o desejo do escritor mas sim ficcionar, sem complexos, a trajectória do homem mais conhecido do mundo. Saramago não contesta a fé nem recusa a ideia que Jesus, nascido em Belém, é filho de Deus mas não sublinha as virtudes deste nem cede à divinização.
“(...) Mais tarde ou mais cedo, também isto terás de aprender, ver como são feitos por dentro aqueles que foram criados para nos servir e alimentar. Jesus virou a cara para o lado e deu um passo para retirar-se, mas Pastor, que detivera o movimento da faca, ainda disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro.”
Saramago centra a sua reflexão, duma forma livre e corajosa, no papel de Jesus de Nazaré na mudança da imagem e na nova mensagem de Deus. Do Deus severo do Velho Testamento ao Deus tolerante do Novo Testamento não podemos negligenciar o papel de Jesus. É simplesmente deliciosa a conversa de Jesus com Deus e o Diabo, numa embarcação, sobre o papel de cada um deles no mundo. Achei este livro um dos melhores de Saramago (a par com o “Ensaio sobre a Cegueira”), e numa época em que as desconstruções banais da história de Jesus abundam (“O Código Da Vinci”) até consegue perder o estigma de livro maldito. E esta desconstrução, diga-se de passagem, é bem melhor que as que têm sido publicadas recentemente. A mensagem de tolerância deste livro é subtil, analisem-na bem...
“(...) Então, servis-vos dos homens, Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare, e ele pára, ordenam-lhe que volte para trás, e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses, E o pau de que eu fui feito, sendo homem, para que colher vai servir, sendo teu filho, Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa que eu o devore, quem a si mesmo se devorará.”
* Aconselho a leitura das várias citações aqui trancritas porque as considero bastante interessantes e cheias de provocações!
9 Comments:
At 11:05 da tarde, mfc said…
E çlembraste da história daquele secretário de estado da cultura(o da Moderna) que proibiu o livro de concorrer a um prémio internacional?
At 2:32 da manhã, Ricardo said…
mfc... goste-se ou não do autor ou da obra, só há cabimento em censurar algo se houver uma violação grave a um direito humano. Censurar por causa da sensibilidade pessoal em relação a um tema é extremamente provinciano!
At 11:50 da manhã, Didas said…
Por acaso esse nunca li.
At 1:05 da tarde, Ricardo said…
Didas... este livro recomendo! Não posso dizer o mesmo de todos os livros do Saramago mas este confesso que gostei!
At 1:09 da tarde, Ricardo said…
Micróbio... aconselho a leitura das transcrições e do livro. Pode-se gostar ou não mas é um livro incontornável. A censura foi lamentável mas o livro está bastante interessante. Os critérios para o Nobel são subjectivos mas isso é normal. A arte, em qualquer das suas formas, não agrada a gregos e troianos. Pessoalmente fico feliz que o Nobel tenha ido para Saramago, independentemente de não concordar com muitas das suas ideias!
At 1:36 da tarde, armando s. sousa said…
Não sei como cheguei aqui.
Mas o teu blog tem assuntos que me interessam.
O Evangelho, é efectivamente um grande livro do Saramago.
Li toda a obra dele e, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, juntamente com o Memorial do Convento são as obras que mais gosto.
At 2:13 da tarde, Ricardo said…
A.S. ... Obrigado pela visita! Infelizmente ainda não li o Memorial do Conevento. No meio de alguns livros de Saramago que não gostei muito, destaco este e o "Ensaio sobre a Cegueira" como os melhores que eu li!
At 3:49 da tarde, Anónimo said…
Bem vindo de volta.espero que as ferias tenham sido optimas a ver aquele que dizem ser o melhor show de fogo de artificio do mundo.
Quanto ao livro, absolutamente genial. Em relaçao à polémica, absolutamente nacional...
um abraço
Miguel Lourenço Pereira
At 4:30 da tarde, Ricardo said…
Miguel... as férias foram boas sim! Quanto ao livro não poderia estar mais de acordo contigo! Um abraço
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