Filho do 25 de Abril

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terça-feira, abril 12, 2005

(396) Páginas Soltas (15): A Vida Como Ela É... de Nelson Rodrigues



Este livro é uma compilação de pequenos contos que Nelson Rodrigues escrevia diariamente para o jornal brasileiro “Última Hora”. O tema é sempre o mesmo, é o adultério. É impressionante alguém ser capaz de escrever mais de 2 mil histórias sobre o adultério.

Os contos são interessantes (apesar de algumas ideias serem utililizadas em excesso) porque abordam a paixão,a morte, o casamento, o desejo e o amor. É um retrato do Rio de Janeiro dos anos 50 e das suas personagens que vivem obcecadas com o pecado.

Vou reproduzir um dos contos (quase integralmente) num português que vem do outro lado do Atlântico:

“SEM CARÁTER

No quarto ou no quinto encontro, apanhou a mão direita da pequena. Fez a pergunta:
- Que anel é este?
- Aliança.
- Você é noiva?
- Ué! Você não sabia?
- Te juro que não.
E ela:
- Pois sou. Noiva. Vou me casar em maio.
- No duro?
- Palavra de honra!
Então, na sua impressão profunda, Geraldo bufou:
- Estou besta! Com a minha cara no chão!
Conhecera a pequena numa saída de cinema, em fim de sessão. Sentindo-se olhado, animou-se. A pequena podia não ser nenhum deslumbramento. Era, porém, jeitosa de rosto e de corpo. Geraldo, hesitante, aventurou:
- Pode ser ou está difícil?

(...)

Com ou sem escrúpulos, Geraldo continuou o romance. Mas, sem querer, sem sentir, foi se deixando dominar pela obsessão do noivo. Nos encontros com a pequena, fazia do outro quase um assunto exclusivo. Indagava: “Conta como é teu noivo, conta!”. Jandira fazia-lhe a vontade:
- Imagina que até hoje não me beijou na boca!
- Por quê?
- Sei lá!
- Ué!
E ela:
- Sabe qual é a mania dele? Deixa tudo para depois do casamento, inclusive o beijo.
- Gozado!
- Não é?
E como o assunto era um beijo, ela recostava a cabeça no seu ombro. Pedia:
- Dá um daqueles, dá!
Com uma espécie de raiva, de remorso, ele obedecia. E assim iam vivendo aquela história de amor. Um dia, porém, há a coincidência. Pela primeira vez a vê, com o noivo, num cinema. Parecia amorosa e feliz ao lado do outro. Geraldo ainda resistiu uns quinze a vinte minutos. Acabou não aguentando. Levantou-se, abandonou o cinema no meio do filme, indignado. Nessa noite não dormiu. Das onze horas da noite até as sete horas da manhã fumou dois maços de cigarros. Subitamente compreendia, com uma dessas clarividências inapeláveis, que amava essa menina até onde um homem pode amar uma mulher. Apertando a cabeça entre as mãos, refletia: “Eu também sou traído. Ela me trai com o noivo!”.

Quando se encontraram à tarde, ele se enfureceu: “Ou ele ou eu!”. Com o lábio trêmulo, perguntava: “Ou tu pensas que eu divido mulher com os outros? Em absoluto!”. Surpresa e divertida, ela indaga:
- Quem é o noivo?
- Ele.
- Pois é. Como noivo, ele tem todos os direitos, ao passo que você não tem nenhum. Claro como água, meu anjo, claríssimo!
Fora de si, agarrou-a pelos braços: “Vamos acabar com isso. Ele é que é o noivo, quem vai casar contigo. E eu sou o carona. Não senhora! Não interessa!”. Quase na hora de se despedirem, Geraldo propõe a solução:
- Vamos fazer o seguinte: você desmancha seu noivado.
- E depois?
- Bem. Depois você casa comigo, ok?
Custou a responder:
- Ok.

Parecia definida a situação. Todavia, no seguinte encontro, Jandira apareceu desesperada: “Desmanchar com o meu noivo pra quê? Não está tão bom assim?”. Tentava convencê-lo: ”Eu continuarei contigo, bobo!”. Fez a pergunta sofrida; “Mesmo depois do casamento?”. Admitiu: “Claro!”. Por um instante ele ficou mudo, em suspenso. E, súbito, exalta-se:
- Assim eu não quero! Assim não interessa!
- Por quê?
E ele, quase chorando:
- Porque o noivo tem todas as vantagens, todas. E, no casamento, o marido é um paxá, um boa-vida. E o amante é um pobre-diabo, um infeliz, um palhaço! Eu não quero ser o amante, ouviste?
A pequena suspirou:
- Você é quem sabe!

A partir de então, sempre que se encontravam, perguntava, ávido: “Já acabaste?”. Jandira respondia: “Não. Ainda não. Amanhã, sem falta”. Mas este “amanhã” nunca chegava. Uma tarde, ele, mais violento, gritou. Ela, ressentida, endureceu o rosto: “Não vai dar certo. É melhor a gente acabar”. Esbugalhou os olhos: “Não vai dar certo por quê?”. E ela, baixo: “Porque eu quero os dois”. Recuou, assombrado: “Os dois?”. Confirmou, sem medo, acrescentando:
- Serve assim?
Com a boca torcida, Geraldo diz-lhe: “Olha, sabes o que tu merecias por este teu cinismo, sabes? Um tiro na boca! Cínica! Cínica!”. Então, senhora de si, a moça apanhou a bolsa no jardim. Ergueu-se: “Paciência”. Atônito, viu-a afastar-se. Mas não resistiu. Correu. Caminhando a seu lado, na alameda deserta, soluçou: “Serve assim! Serve!”. Completou, arquejante:
- Mas eu quero ser o marido! Não quero ser o outro!
Um ano depois, casaram-se. No civil e no religioso, Geraldo viu, entre os presentes, o ex-noivo, num terno azul-marinho, de cerimônia.”