Filho do 25 de Abril

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sexta-feira, outubro 21, 2005

596. Sala de Cinema: Alice



Realizador: Marco Martins
Elenco: Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Miguel Guilherme, Ana Bustorff, Gonçalo Waddington, Ivo Canelas

É uma enorme responsabilidade escrever uma crítica a este filme porque não é fácil exprimir em palavras a intensidade do mesmo. Não estou a sustentar que estamos perante o expoente máximo do nosso cinema mas afirmo, sem hesitação, que em conjunto com Noite Escura estamos perante do melhor que se tem feito de cinema em Portugal nos últimos anos, ou até décadas! É raro que um filme parta duma ideia simples (mas poderosa) e não a largue nem por um momento até que fique bem claro o que está em jogo. E fazer isso com eficácia é ainda mais raro! E o que está em jogo é o drama do desaparecimento duma criança e o seu efeito nos pais! A criança chama-se Alice!

Os pais são Nuno Lopes e Beatriz Batarda que são, respectivamente, uma promessa do cinema nacional e uma confirmação do enorme talento. O primeiro faz uma interpretação contida mas de enorme expressividade e a obsessão com que se entrega ao trabalho faz lembrar o Robert DeNiro dos anos 70 ou 80. A segunda é uma actriz fabulosa capaz de transparecer uma enorme fragilidade mas, ao mesmo tempo, uma enorme força de vontade. A cena da sua “explosão dramática” está forte mas sem excesso o que confirma (como se fosse necessário) a sua qualidade. A maior parte das personagens secundárias (com excepção para Miguel Guilherme) são um pouco estereotipadas e não conseguem transmitir o mesmo grau de realismo que o resto do filme tem mas, mesmo assim, não são o suficiente para manchar a qualidade da longa metragem.



Mário (Nuno Lopes) vive obcecado em encontrar a sua filha e coloca, em vários pontos da cidade, câmaras de vídeo para tentar encontrar a sua filha a passar na rua. Segundo ele, ela vai ter que voltar a passar por ali, mais cedo ou mais tarde. É deste modo que Mário interage com a cidade, leia-se, em apartamentos mais ou menos degradados de Lisboa habitados pelos seus amigos e conhecidos que julgam que este está à beira de perder a sanidade mental. As imagens de Mário no meio das televisões e das fotografias além de visualmente bem conseguidas são uma abordagem original do realizador para transmitir o desespero da ausência e a solidão que um homem enfrenta quando luta por algo duma forma que mais ninguém parece compreender. O filme faz-nos também reflectir sobre os perigos para a nossa privacidade da instalação de sistemas de vigilância.



Marco Martins tem aqui o que julgo ser a sua estreia nas longas metragens e nota-se que fez um filme com paixão e entrega. O aspecto visual do filme está adequado apesar de, no início, irritar um pouco a câmara desfocada. Mas depois de ver o filme não consigo adivinhar uma melhor forma para o filmar. Posso afirmar que Marco Martins pode, rapidamente, ganhar um lugar de destaque na nossa pequena indústria cinematográfica. Basta continuar a ter a entrega que teve neste filme.

Mas o que é realmente surpreendente é a forma como Lisboa é retratada neste filme (a história não deve ser menosprezada mas confesso que foi esta visão de Lisboa que fez com que definitivamente me rendesse ao filme). Lisboa aparece aqui como uma cidade abstracta e desfocada, onde toda a sua luz (natural) é sugada por um manto constante de chuva. É interessante a personagem estar rodeada por milhares de pessoas e, ao mesmo tempo, estar absolutamente só no meio de todo aquele anonimato. A maneira como Mário interage com o trânsito da cidade dá a imagem duma cidade que já conheceu melhores dias, onde os operários seguem obedientes - mas duma forma algo caótica - em direcção a uma vida sem afectos, de completa indiferença. De notar que o filme não tem figurantes o que lhe dá um realismo que não podia ser alcançado duma forma “treinada”.

Síntese da Opinião: Quem gostar de filmes negros com uma quase ausência de cor alicerçados numa boa história, boas representações e uma realização imaculada deve ir ver este filme. Sem preconceitos em relação ao nosso cinema, se faz favor!

1 Comments:

  • At 9:26 da tarde, Blogger Inês said…

    Posso subscrever? É que eu, duas semanas e picos depois de o ter visto, ainda não consegui (decidir se quero, sequer) tirar da ideia uma cidade-linha-de-montagem onde o desprezo impera. E o incrível é que é mesmo assim...
    permite-me só discordar quando dizes que "a maior parte das personagens secundárias são um pouco estereótipadas e não conseguem transmitir o mesmo grau de realismo que o resto do filme". Quando passas por um qualquer alguém numa grande cidade, o que vês, um estéreotipo? Se não o fazes, dou-te os meus parabéns.

    Continua com o bom trabalho neste cantinho, por favor =)

     

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