Filho do 25 de Abril

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segunda-feira, outubro 17, 2005

592. O Referendo sobre a descriminalização do aborto



Legenda da imagem: Um exemplo do que não está em jogo, ou seja, ninguém está a querer referendar o aborto


1. Porque é que nunca devia ter sido feito um referendo!

Há uma hipocrisia gritante sempre que este tema é discutido. Nunca foi defendido que o aborto fosse liberalizado nem nunca ninguém tentou tornar o aborto como um método contraceptivo ou algo que devesse ser feito de ânimo leve. Mas é exactamente por estar a ser praticado de forma cruel e de ânimo leve que justifica uma intervenção diferente do Estado. Só após a discriminalização (interrupção voluntária da gravidez até determinado mês de gestação sem constituir crime) é que o Estado pode actuar num estabelecimento legal de saúde. Discriminalizar não é incentivar!

A hipocrisia reside exactamente neste ponto: o Estado não pode actuar na prevenção, apoio e informação porque não é legal e a polícia e justiça não actuam porque são "obrigadas" a ter um papel dúbio onde não se condena ninguém - por pressão social e por mero bom senso - mas que têm que fingir que actuam por força da lei e das denúncias. Parece que é mais fácil ignorar o problema que combatê-lo. Por isso o referendo nunca teve sustentação, leia-se, porquê referendar algo que apenas vai de encontro a um mais eficaz combate regulamentar do aborto clandestino? Qual é a utilidade dum referendo numa questão que só visa dar ao Estado mais meios para combater o problema e que não significa um apoio ao aborto?

Não se trata duma desistência mas sim de enfrentar o problema duma forma não demagógica, realista e responsável. O pós referendo - no caso da vitória do "Sim" - tem que ser acompanhado com um sinal claro que as pessoas têm que ser responsáveis quando debatem o futuro duma gravidez. E isso só pode ser feito junto das pessoas e não com panfletos do tipo: "A todos aqueles que estão a pensar infrigir a lei e que, por isso, não podem procurar informação e aconselhamento vamos difundir, à distância, informações gerais sobre o tema. Note-se que sabemos que não há abortos mas para a eventualidade de haverem vocês deviam saber isto... Como não sabemos quem contactar vamos mandar uma carta a todas as mulheres com mais de 18 anos e menos de 70 anos (ou será melhor a partir dos 12 anos?)" Não acham isto tudo demasiado caricato?

O referendo foi um triste espectáculo de demagogia e desinformação de todas as partes e nada mudou nestes anos. O impacto do "Sim" é incerto mas tem, pelo menos, a virtude de passar a haver meios legais para enfrentar o problema e, mesmo que o resultado final seja o mesmo, pelo menos há a opção de fazer o que já é feito em condições de dignidade e higiene.


2. Porque é que tem que ser feito um referendo!

Porque não podemos corrigir um erro com um erro ainda maior. Qualquer solução que saia fora do âmbito dum referendo nunca será duradoura e pode causar um agravamento dos problemas de confiança entre os cidadãos e os seus representantes uma vez que já houve uma consulta prévia.


3. O que o referendo não vai resolver!

Vai continuar a haver abortos de risco em situações em que a gravidez já se prolonga para além da data imposta em referendo! O Estado tem que perceber que não pode combater a decisão da mulher "pela força" e tem que actuar - através da informação e da proximidade - para minimizar este problema. Eu até defendo, em tese, que não haja nenhum período limite para o aborto mas não quero trazer para o debate mais confusão. No fundo, mesmo que a mulher não tenha o direito de decidir o futuro do que está a gerar, ela vai ter sempre os meios - legais ou ilegais, com ou sem higiene, colocando ou não em perigo a sua vida e futura reprodução – para impor a sua decisão. Sou contra o aborto mas a vida não é perfeita e não posso julgar ninguém até porque quem disse que, por exemplo, um bébe gerado por uma violação ou portador duma deficiência também não tem direito à vida? O problema é complexo mas esta parece-me a única forma de combater o fenómeno e a hipocrisia.

Também não vai resolver o problema de todas as mulheres que, por condicionamento social, receiam ir a um estabelecimento legal de saúde e, por isso, dificilmente vai erradicar uma significativa percentagem de abortos clandestinos. Mas passa a haver uma opção e isso faz toda a diferença do mundo!


4. O que é urgente!

Que o referendo seja feito rapidamente e que se faça, pela primeira vez em Portugal, um referendo realmente informativo sem excessos de parte a parte. E espero que haja o bom senso de não voltar a votar “Não” porque era estar a criar um problema bicudo e a tapar o sol com a peneira. Esta é a minha (pouco) democrática opinião!


Nota Final: Sou muito descrente da utilidade informativa dos referendos mas também sou muito crítico da falta de discussão pública de certos temas. O que será melhor? Uma campanha de desinformação ou a não discussão dos temas? São dois maus cenários e a Democracia ainda não encontrou a forma ideal de discutir seriamente os temas civilizacionais...

6 Comments:

  • At 9:39 da tarde, Blogger mfc said…

    Andam todos a brincar com o referendo e ninguém quer ficar com a batata quente nas mãos...nem mesmo aqueles que o defendem!

     
  • At 10:02 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    100% de acordo contigo. Até que enfim...
    Só tenho uma dúvida que gostaria de partilhar contigo e que é; na eventualidade de o referendo não se realizar agora, o problema deve ser resolvido pela AR de onde aliás não deveria ter saído ou deve ser adiado para a próxima sessão legislativa?

     
  • At 10:08 da tarde, Blogger Ricardo said…

    mfc,

    O problema é que a resolução desta questão agora é política e nunca deveria ter ganho essa conotação. Agora temos um problema bicudo para resolver...

    Abraço,

     
  • At 10:15 da tarde, Blogger Ricardo said…

    Charago,

    Nós não discordamos assim tanto. Temos é apenas uma pequena diferença de métodos, hehe!

    Na minha opinião este problema não pode ser resolvido fora de referendo (pelas razões que invoquei no ponto 2). Mesmo que todos os partidos chegassem a um acordo (o que é deveras improvável) ainda sobravam os cidadãos que iam ficar a pensar, e bem, que a opinião deles só servia para atingir determinado resultado, ou seja, que a opinião nem interessava.

    Após o erro estar feito não é saudável para a Democracia novo erro e espero que os partidos não caiam nessa tentação.

    Se o referendo não poder ser feito já considero isso grave, isto é, é adiar o inadiável. Mas colocando os dois problemas na balança tendo para a resolução logo, e repito logo, que seja possível.

    E depois espero que a discussão seja informativa, para variar!

    Abraço,

     
  • At 1:19 da manhã, Blogger Unknown said…

    Ricardo,

    Eu acho que, para já, não se devia fazer referendo nenhum. Nem sequer alterar a actual Lei sobre o aborto.

    Toda a gente diz que a Lei actual é muito parecida com a espanhola mas a espanhola funciona e anossa não.

    E é por aí que se deve começar, por ver porque é que a Lei existente não funciona. É que podemos alterar a Lei à vontade, com ou sem Referendo, mas os entraves que se colocam à actual legislação irão certamente continuar e, a próxima Lei, também não funcionará.

    O hábito de por tudo e por nada produzir legislação é um mau hábito que, geralmente, não resolve nenhum problema.

    Um abraço

     
  • At 2:20 da manhã, Blogger Ricardo said…

    Raio,

    à primeira vista pensei que a lei espanhola era muito diferente mas não é. Mas também é uma solução que não quero ver em Portugal por muito que tenha sido pragmática. É a negação do Estado de Direito!

    95% dos abortos em Espanha são ilegais em estabelecimentos legais. Resolveram o problema sem mexer muito na lei mas o próprio Estado tem uma prática ilegal. Não acho isso saudável e está a criar fortes divisões em Espanha. Basta alguém lembrar-se de processar o Estado que o sistema cai. Segundo vi na internet o aborto está liberalizado em Espanha desde 1985. No ano passado cerca de 80000 abortos foram feitos em Espanha, na maioria em clínicas privadas. Até 2006,"o Governo espanhol realizará a reforma que permitirá o aborto nas 12 primeiras semanas de gestação sem necessidade de alegar motivo"! Parece-me que o cenário espanhol é bastante diferente mas admito não conhecer em profundidade a realidade espanhola nem acho que seja importante, o que importa é o que se passa aqui, dentro de portas.

    A lei actual tem um problema de fundo que nunca vai ser resolvido, isto é, vai sempre haver mulheres que optam por abortar e que o Estado nunca vai poder controlar. Nesses casos essas mulheres nunca vão optar por estabelecimentos legais de saúde impedindo o Estado de fornecer informação sobre outras opções em condições de proximidade e acabam por colocar em risco a sua própria saúde.

    Concordo contigo que nem sempre boas leis são bem executadas e que, desnecessariamente, produzem-se novas leis. Mas, neste caso, nem estamos perante uma boa lei (está desadequada da realidade) nem é desnecessário mudar radicalmente a abordagem. Se depois a nova lei vai ser bem aplicada isso já não sei responder.

    Abraço,

     

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