Filho do 25 de Abril

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domingo, outubro 16, 2005

590. Páginas Soltas (18): Carne de Cão, de Pedro Juan Gutiérrez



“Continuei a caminhar e a olhar para a areia. Ao pé de outro coqueiro havia um preservativo usado, cheio de esperma. Muito sémen. Centenas de formigas movimentavam-se nervosas, excitadas, dentro da camisa e à sua volta. Bebiam, comiam, mastigavam e engoliam espermatozóides. Centens de pequenas formigas, alegres e divertidas, devoravam os microscópicos cadáveres de milhares de seres humanos. O banquete das formigas.

Caminhei um pouco mais à beira-mar até que o vento me secou completamente. Vesti-me e fui para casa. Talvez tudo se organize à minha volta e apenas precise de continuar só e em silêncio, a observar a brutalidade em carne viva e visceral, como se a vida fosse um drama interminável.

«A vida é uma comédia», disse para comigo. É preciso repeti-lo até ser verdade. A vida é uma comédia. A vida é uma comédia.”

Pedro Juan Gutiérrez, Carne de Cão


Carne de Cão encerra o “Ciclo de Havana Central”, um conjunto de cinco livros escritos por Pedro Juan Gutiérrez que teve início com Triologia Suja de Havana e que teve continuidade com O Rei de Havana, Animal Tropical e O Insaciável Homem-Aranha.

Este livro é um conjunto de contos que têm a mesma personagem central – que se confunde com o autor, sem sabermos onde está a linha que separa a ficção e a realidade – e que descreve o quotidiano dos habitantes de Havana. É um dia a dia repleto de decadência onde os habitantes da cidade parecem atingidos por uma letargia que os imobiliza até à morte. Eu posso descrever a vida destas pessoas através da palavra apatia – onde só o rum, a erva e a busca incessante pelo sexo preenchem a vida – mas também tenho que reconhecer que há um sentido prático da vida que as sociedades mais ocidentalizadas preferem ignorar. “Nós” também estamos envoltos num sono profundo, só não o sabemos reconhecer.

A linguagem é crua e intensa e apesar deste ser, provavelmente, o pior dos cinco livros continua a ter o dom de não nos deixar indiferentes. Não há aqui beleza e consistência narrativa mas sim uma sensação de realismo, leia-se, conseguimos aceitar todas estas histórias como credíveis. A linguagem é banal e vulgar mas é a única forma de entender este estado mórbido em que vivem muitos dos habitantes de Havana. A ler nem que seja para que alguns dos preconceitos e incompreensões que temos em relação à mentalidade de quem cresceu e foi educado de maneira diferente sejam dissipados.

*Tópicos relacionados:
(395) Páginas Soltas (14): O Insaciável Homem-Aranha, de Pedro Juan Gutiérrez
Memórias do Filho do 25 de Abril: Literatura

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