Filho do 25 de Abril

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sexta-feira, fevereiro 24, 2006

795. Sala de Cinema: Syriana



Realizador: Stephen Gaghan
Elenco: George Clooney, Matt Damon, Jeffrey Wright, Christopher Plummer, Chris Cooper, Alexander Siddig, Mazhar Munir, William Hurt

Syriana é um filme complexo em que todas as acções das suas personagens acabam por afectar as outras personagens, directa ou indirectamente, por mais distantes que se encontrem ou por mais inverosímel que seja uma ligação entre elas. É o típico filme mosaico em que Stephen Gaghan já tinha dado provas de que era especialista no argumento de Traffic e que agora volta a dar cartas em Syriana. É só pena que Gaghan não seja tão bom realizador como é argumentista. O livro é baseado numa obra dum ex-operacional da CIA, See No Evil.



O filme gira à volta da guerra pela energia e consegue focar as muitas perspectivas e consequências dessa guerra. O que é interessante é que não é fácil distinguir quais são os verdadeiros jogadores e quais são os peões neste imenso jogo que não segue regras morais e que tem jogadores com poucos escrúpulos. Temos um operacial da CIA (George Clooney) que é um mero peão dum jogo diplomático e económico, temos um consultor económico (Matt Damon) que é um idealista por força dos acontecimentos da sua vida, temos um advogado (Jeffrey Wright) que consegue entrar no jogo quando nada o fazia prever, temos um príncipe de um país arábe não identificado (Alexander Siddig) que tenta fazer a diferença mas que nunca consegue dominar o jogo, temos industriais corruptos, temos procuradores comprometidos, temos a CIA a trabalhar para os industriais, temos jovens paquistaneses facilmente manipulados por terem perdido a esperança. A quantidade de personagens é gigantesca mas a grande vantagem é que, mesmo sem sabermos todas as motivações por detrás das suas acções, todos comportam-se de forma intuitiva e a acção de cada um afecta e condiciona a acção dos restantes como uma máquina oleada (destaco as interpretações de George Clooney, Chris Cooper e Christopher Plummer). Como o realizador referiu numa entrevista: “É um mundo pequeno. Um tipo numa caverna no Afeganistão pode deitar abaixo o World Trade Center. Estamos todos ligados sem nos apercebermos”.

Há filmes em que, mesmo com poucas personagens, ficamos com a sensação de que estas foram mal desenvolvidas emocionalmente e que expressam pouco realismo mas neste filme, mesmo com dezenas de personagens, tudo flui de maneira natural e com um tal realismo que parece que tudo o que está a acontecer é possível e credível. E, com os dados que possuímos diariamente, não é difícil de acreditar, nem por um momento, que este jogo pelo controlo da energia segue regras que são inaceitáveis. Mas o ocidental, sentado no seu automóvel, parece não estar disposto a mudar as regras mesmo quando o terrorismo que floresce no meio destas mega negociações bate-nos à porta. Vivemos na época do comodismo e do divórcio pelos deveres de cidadania e a regra é chateiem-nos pouco e forneçam-nos conforto que nós não nos importamos como o fazem. Até aqui o filme é equilibrado porque para que o controlo pela energia seja lucrativo os que corropem e são corrompidos no Ocidente precisam de quem seja corrompido e corrompa nos países árabes. E é aqui que entra a diplomacia para garantir que os corruptos continuem a existir dos dois lados. Mas, se por um lado, as sociedades ocidentais ganham qualidade de vida, por outro lado, as sociedades dos países produtores de energia fóssil têm que se manter instáveis e sem acesso aos lucros dessa mesma energia. E não me lembro dum filme contar este processo duma forma tão cínica, crua e realista.

Há dois episódios interessantes no filme que tenho que partilhar. Um dos magnatas do petróleo explica que não é preciso mais petróleo mas sim que é preciso é que este não chegue a todo o lado (e ainda menos a preços baixos). Depois vangloria-se por ser ele um dos responsáveis pela China crescer a um ritmo abaixo do seu real potencial. A outra situação está relacionada com a falta de opções de alguns dirigentes de países do Médio Oriente que dependem, directa ou indirectamente, da aprovação ocidental para subirem ao poder e manterem-se lá. Essa dependência condiciona a forma como podem potenciar os recursos provenientes do ouro negro em benefício das populações. A história que o filme retrata baseia-se na impossibilidade de um sucessor ao poder num país árabe não identificado poder negociar livremente, por exemplo com os chineses, a forma de exploração dos recursos desse país.



O que mais choca no filme é este dar a entender que o único acto que faz sentido no meio desta corrupção desumana (que aparentemente está blindada) é... um acto de terrorismo! Choca sentir isso e não podemos nem minimizar o horror do terrorismo nem minimizar o horror de viver estrangulado pela corrupção e pela miséria! Tenho que condenar, mais do que nunca, o recurso à violência porque esta nunca atinge os seus objectivos e só ajuda a criar mais instabilidade. A história é tão envolvente que cobre-nos dum sentimento de desalento. Coloca-nos num beco sem saída. E, no meio de tanta hipocrisia, todos são peões (por ignorância ou por necessidade) dum jogo com um único objectivo: permitir que a corrupção e a instabilidade não desapareçam. E nós? O que estamos dispostos a abdicar para que esta situação acabe? Muito pouco porque sabemos que a nossa qualidade de vida está alicerçada na perpetuação da injustiça.

Síntese da Opinião: Um argumento inteligente e subtil. Tudo acontece mais depressa do que a nossa capacidade de captação dos acontecimentos e a beleza do filme está nessa capacidade de interligar tudo fazendo a informação aparecer a conta gotas até ao fim. Apesar de recomendar o filme não posso deixar de sublinhar que Gaghan é melhor argumentista do que realizador.

Memórias do Filho do 25 de Abril: Sétima Arte (todos os textos deste blogue sobre cinema)

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8 Comments:

  • At 12:20 da tarde, Blogger H. Sousa said…

    Syriana! Vou já ver se encontro para alugar. É um tema que me interessa, como sabes. Como dizes, nós teríamos o poder de fazer mudar muita coisa se abdicássemos de um certo estilo de vida a que nos condicionaram. O despertar das consciências parece-me quase impossível.

     
  • At 2:14 da tarde, Blogger Ricardo said…

    Henrique,

    Uma vez que o filme acabou de estrear nas salas de cinema vais ter que esperar algum tempo até encontrá-lo para alugar. Acho que vais gostar do filme.

    Abraço e bom fim de semana,

     
  • At 3:07 da tarde, Blogger H. Sousa said…

    Em filmes sou uma lástima...

     
  • At 3:51 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Ric,

    Ainda não estreiou o filme no Brasil,mas fiquei entusiasmado com sua, digamos, eloqüência ao falar sobre ele.

    Tá no top da lista.

    Abração.
    Diego A. Carvalho

     
  • At 5:34 da tarde, Blogger Rui Martins said…

    Extremamente actual pelo tema e foco da acção... A ver, sem dúvida.

     
  • At 7:02 da tarde, Blogger gonn1000 said…

    É um filme interessante, mas a narrativa nem sempre cativa. Vale pelo tema, pelos actores e por algumas cenas bem conseguidas (em particular os minutos finais, com uma tensão que poderia estar mais presente).

     
  • At 5:42 da tarde, Blogger Politikus said…

    Creio que é um excelente filme. Será que se faz futurologia ou esta-se a falar do presente... fica a dúvida???????

     
  • At 3:03 da tarde, Blogger Alien David Sousa said…

    Gostei da interpertação do senhor George Clooney. Quanto ao filme, não deixou marcas na minha pessoa. Não o sei explicar - ou sei , e seria uma explicação muito longa -, mas, talvez pela narrativa, ou pela sequência das cenas, o filme não me agarrou.

     

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