545. Páginas Soltas (17): O Caminho para Wigan Pier, de George Orwell
Ao longo das duas últimas semanas coloquei vários excertos do livro à discussão e, sem surpresa, é fácil constatar que Orwell continua actual. E será sempre actual. Porque o mundo gira mas as preocupações do homem apenas mudam de nome e não na sua essência. Não é um visionário mas um homem de palavras simples que recusa-se a ser refém das suas próprias ideias. Nesta fase da sua vida Orwell já tinha regressado da Birmânia e já tinha deambulado por Paris e Londres (ver aqui). O peso que já carrega não é leve e fica a sensação que a culpa já faz parte da sua vida. Mas embora seja visceralmente contra o fascismo e defenda o socialismo (este livro foi encomendado por um clube socialista inglês) não pensem que tudo o que defende não seja constantemente questionado por ele próprio.
E aqui chegamos à questão essencial: devemos defender algo em que acreditamos cegamente? A mensagem que aprendi de Orwell neste livro é que devemos lutar pelo que acreditamos mas nunca deixar de parar para reflectir sobre o que estamos a defender antes que a nossa paixão por tornar o mundo melhor acabe por ajudar a criar mais injustiças. Esta análise fria das ideias e do seu contexto, sempre em mudança, será muito mais explorada nas suas obras (primas) de ficção, O Triunfo dos Porcos e 1984.
Não esperem deste livro um hino ao Socialismo nem um rol de propaganda mas sim uma análise lúcida sobre a realidade da pobreza, do industrialismo, da luta de classes... Lúcida mas nem sempre coerente porque a vida é feita de pontos de vista e ninguém é o dono do melhor miradouro da vida. O homem não é capaz e nunca será capaz de entender o “grande quadro” e por isso prestem muita atenção àqueles que sabem que "este" (ou "qualquer outro") é o único trajecto porque se o fazem por convicção estão iludidos e se o fazem sem convicção é porque são demagogos. Mas eu também iludo-me por vezes e, nas restantes ocasiões, sou demagogo. Mas, como Orwell, só tento ser uma pessoa decente...
*Há vários textos e comentários aos livros de Orwell (e outros livros) nesta ligação:
Memórias do Filho do 25 de Abril - Literatura
11 Comments:
At 4:41 da tarde, Unknown said…
Não conheço tanto do Orwell como gostaria. Mas há poucas coisas que conheça tanto quanto gostaria.
Acima de tudo, aprecio-lhe a lucidez.
Qto a ti, parececes-me um tipo decente ;).
bj
At 4:20 da tarde, pindérico said…
Pois, meu caro Ricardo, é como dizes! "Devemos lutar pelo que acreditamos mas nunca deixar de parar para reflectir sobre o que estamos a defender"!
As pequenas férias que impus ao "Pindérico" foram uma consequência do marasmo em que me senti envolvido e arrastaram-se entretanto porque o que aconteceu às minhas convicções, o caminho que as coisas levam, me sugere agora um tempo suplementar de análise.
Neste momento só consigo falar de repugnância , só me apetece denunciar batotas, só me assustam os momentos em que dou por mim a desejar o fim deste pesadelo que insisto em designar como democracia!
De resto, tudo bem!
At 10:57 da manhã, H. Sousa said…
Julgo, mas posso estar errado, que Orwell é responsável por uma determinada forma de estar no mundo, muito patente na classe dominante. Porquê?
At 12:30 da tarde, Anónimo said…
Ninguém deve acreditar em nada cegamente, Ricardo. E a reflexão sobre o que defendo, cada vez mais me empurra para a esquerda, hoje mais de que ontem. Porque isto é uma porcaria, Ricardo e nós não podemos ficar indiferentes a olhar e a pensar só, também temos de agir para que acabem ou minorem estas brutais desigualdades no mundo em que uns não têm nada.
At 2:39 da tarde, Anónimo said…
Estou em completo desacordo com os que condenam absolutamente "esta democracia".
Viver em democracia é dificil, porque obriga a contradizer-nos constantemente, a repensar, a ter que duvidar do que ainda ontem era sagrado, tira o apetite e o sono, esgota a paciência, mas só assim a civilidade/civilização avança.
O mundo não pára: avança ou retrocede.
Por isso em ditadura tudo é mais fácil.Só que estamos a retroceder, mas sem sabermos.
At 10:58 da tarde, Ricardo said…
tnt,
O teu comentário pode ter várias interpretações. Em vez de estar aqui a escolher uma devolvo-te a questão de forma a precisares o que quiseste dizer. Até porque não sei se o pensamento de Orwell encaixa numa "certa forma de estar no mundo" da classe dominante.
Abraço
P.S. Já estive a ler a fase inicial do teu projecto de livro e gostei do que li até agora.
At 1:29 da manhã, Ricardo said…
Índico,
Esta "democracia" está doente. Por muito que ela permita livremente que seja criticada não reage a essas críticas. A doença existe... resta saber é se há capacidade de regeneração deste regime ou se a sua lenta agonia vai levar a outras formas de representatividade...
Abraço,
At 2:14 da manhã, H. Sousa said…
Admito que Orwell tenha escrito coisas muito interessantes. Mas, como toda a intelectualidade que se preza não pode desconhecer a obra dele, calculo que nela tenha sabido exprimir o que vai de encontro ao que as pessoas (burguesia) pensam e sentem. E esse pensar e sentir já lhes foi inculcado pelos valores dominantes.
Quanto ao meu projecto de livro, ainda só foi feito 1 download. Ah! Foste tu?
Abraço,
At 2:29 da manhã, Ricardo said…
TNT,
Orwell reconhece que é um produto da sua classe. Reconhece também que o seu pensamento é influenciado pelos preconceitos que lhe foram impostos na infância (e outros que eu descobri nos seus textos e que ele os ganhou noutros lados).
Mas isso não o impediu de analisar a sociedade de maneira brilhante. Ele viveu bastante tempo na Índia, depois vários meses (pelo menos) entre os sem abrigo e vários meses com trabalhadores de minas além de ter combatido na Catalunha. Essas experiências fizeram-no descrever a sociedade inglesa de forma brilhante, datada mas brilhante. E é interessante observar como ele vai defendendo um ponto de vista para contrariá-lo logo depois e ir cercando o conceito até chegar a uma análise mais lúcida.
Abraço,
P.S. O teu livro além de interessante demonstra um cuidado com as fontes que demonstra que não é um projecto amador. Gosto da tua escrita, algo diferente da maneira mais inflamada com que escreves no blogue. Mas sempre com um toque de ironia que aprecio. Vou ler com mais calma quando tiver mais tempo e depois, quem sabe, pode merecer um comentário... hehe
At 5:26 da tarde, H. Sousa said…
Obrigado, Ricardo. Conseguiste despertar a minha curiosidade em relação à obra de Orwell.
Obrigado também pelos elogios em relação ao meu modesto projecto.
At 5:40 da tarde, Anónimo said…
Também sinto, e senti, essa aflição muitas vezes.
Mas se olharmos para trás temos melhorado. Hoje estamos a saber das iniquidades e falhanços de uma época em que pensávamos ser melhor.
Mas como tinhamos outras preocupações,não nos apercebemos de que tal acontecia.
É mais dificil do que pareceu no dia 26.
Temos que observar os outros, democracias antigas,escolher o exemplo dos povos que estão melhor, e pensar como com as ferramentas que temos vamos por um bom caminho.
Copiar não, dá sempre errado.
E este é o povo que temos, não temos outro, não somos outro.Aqui nada a fazer.
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