Filho do 25 de Abril

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domingo, fevereiro 05, 2006

769. Sala de Cinema: Match Point


Match Point - Woody Allen

Realizador: Woody Allen
Elenco: Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson, Emily Mortimer, Brian Cox

Match Point é do melhor que Woody Allen tem feito nos últimos anos. Também é verdade que não tenho acompanhado com muito rigor os seus últimos filmes mas, impulsionado pelas boas críticas que este filme teve, voltei a ir ao cinema para ver como tinha sido a sua estreia a filmar exclusivamente na Europa, mais concretamente em Londres. E fiquei agradavelmente surpreendido com a solidez do argumento e das personagens que lhe dão corpo, com a química com a cidade e com as interpretações na sua generalidade.


Match Point - Scarlett Johansson e Jonathan Rhys-Meyers

Não é por acaso que a personagem principal está a ler Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, uma vez que a obsessão e a culpa são profundamente exploradas nesta película. A personagem principal, tal como a personagem principal do livro do escritor russo, fica, ainda que por razões diferentes ao longo do filme, submersa na culpa das suas próprias decisões. O seu acesso a uma classe aristocrática após viver com muita dificuldade – mas com muita ambição – na competitiva sociedade londrina prendem-no a uma vida sem alegria mas com muito conforto. Ao ver a sua confortável vida ameaçada por uma obsessão vê-se obrigado a fazer escolhas e opta por um caminho que não tem mais regresso! A culpa não o abandona mais mas, ao contrário da personagem de Dostoiévski, aprende a viver com ela e confia na subvalorizada sorte para manter intacta o que sobra da sua vida.

Já a personagem de Scarlett Johansson – uma jovem actriz americana frustrada profissionalmente – não é bafejada pela mesma sorte e o mesmo pragmatismo com que encara a vida leva-a a ter uma sorte diferente daquela que teve a personagem de Jonathan Rhys-Meyers. Será mesmo tudo uma questão de sorte? Será que há alturas em que a sorte – outro nome para destino – é mais forte que todo o resto? A ópera – a banda sonora é composta só por óperas – anuncia, a todo o momento, a tragédia. E estamos perante um filme trágico, porventura demasiado crú, em que a vida é retratada com imenso realismo – há os que têm a vida facilitada e que vivem na ingenuidade da distância à vida “real”, há os que lutam para atingir esse conforto, há os que conseguem, há os que não conseguem, há os que não se conseguem livrar das suas obsessões, há os que têm sorte e há os que têm azar – e, no fundo, estamos perante uma longa ópera, cheia de tragédia, dor e culpa.

Nota:
Não acho que Scarlett Johansson esteja na melhor fase ao nível da representação – só a este nível – e há algum tempo que não assisto a representações da parte desta ao nível das que nos proporcionou em Lost in Translation e Girl with a Pearl Earring. A sua abordagem ao papel de mulher fatal carece de uma maturidade que eu julgava que esta actriz já tinha mas que, infelizmente, ainda precisa de ser mais trabalhada, quem sabe naturalmente com a idade. Mesmo assim é uma actriz de excepção. Já Jonathan Rhys-Meyers tem, neste filme, um dos seus melhores papeis da sua já extensa carreira.

Síntese da opinião: Um argumento sólido que só podia ter sido escrito para a cidade onde é filmado e para as personagens que, por sorte ou azar, lá habitam. Woody Allen a recordar outros tempos com uma alegria e uma sobriedade a filmar que não estavam presentes na sua obra há muito tempo.

Memórias do Filho do 25 de Abril: Sétima Arte (todos os textos deste blogue sobre cinema)

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12 Comments:

  • At 10:37 da tarde, Blogger pedro oliveira said…

    É, também, um filme que permite várias leituras, inclusivé políticas.
    Recordas-te da vizinha? Da morte como danos colaterais?

     
  • At 11:16 da tarde, Blogger Unknown said…

    olá Ricardo,
    Jonathan Rhys-Meyers está ao seu melhor nivel, sombrio como nunca se imaginou. Woody Alen tem um jeito desmesurado para escolher os actores.

    Relativamente à Scarlett... acho que ficámos todos com expectativas demasiado elevadas. Ela lembra um pouco actrizes com a Meryl Streep ou a Susan Sarandon: não sofre a mutação total. Veste o papael mas nunca se despe de si. Ou pelo menos assim me parece.

    És a primeira pessoa que nota a leitura do "Crime e Castigo", a qual cai na personagem como uma luva. (Lembrou-me o Bale no Maquinista, a ler "O Idiota")

    É um filme trágico mas, acima de tudo, belíssimo. Nunca a fealdade do egoísmo foi tão tragicamente dotada de pureza.
    É a redenção de Woody, após 2 ou 3 anos de menor inspiração.

    bjs

     
  • At 11:29 da tarde, Blogger Ricardo said…

    Pedro,

    As leituras políticas jogam-se aqui no campo da culpa. Apesar de não me parecer querer ser o centro do filme não deixa de ser interessante reflectir sobre os temas mais globais.

    Abraço,

     
  • At 11:32 da tarde, Blogger Ricardo said…

    RSD,

    Quanto aos actores estou de acordo com a tua análise. A Scarlett finalmente está a deixar transparecer a sua idade, nada mais natural. As expectativas é que andavam completamente desmesuradas. Ainda tem muitas cartas para dar e muito para crescer mas vai no bom sentido.

    Jonathan Rhys-Meyers é um actor que já sabia ser capaz do bom (Velvet Goldmine, Titus) mas foi realmente surpreendente neste filme.

    Ainda não vi o Maquinista mas estou, neste momento, a ler o Idiota. Vou estar atento ao livro e depois ao filme para aperceber-me dos paralelos.

    "Nunca a fealdade do egoísmo foi tão tragicamente dotada de pureza."

    Não diria melhor!

    Bjs,

     
  • At 11:59 da tarde, Blogger Politikus said…

    Concordo com quase tudo menos com isto:
    "Match Point é do melhor que Woody Allen tem feito nos últimos anos".
    Mas como não sou fan do Woddy A. devia ficar calado...

     
  • At 12:17 da manhã, Blogger Ricardo said…

    Polittikus,

    Se concordas com quase tudo - que o filme é interessante, etc. - mas não concordas que é do melhor que Woody Allen fez nos últimos anos então quais são os seus filmes recentes que gostas? Eu achei-os algo desinspirados... a mudança de ares parece que fez bem a este realizador que já estava a filmar de forma mecânica!

    Abraço,

     
  • At 1:50 da tarde, Blogger A. Cabral said…

    Sem saber bem porque mal suportei este filme. Alguem tinha que aqui discordar...

    Porque as personagens sao caricaturais parece sugerir um humor que nunca acontece (tirando talvez o desenlace policial final). Porque o pano de fundo e' a aspiracao social sugere leituras politicas mas que nao passam do superficial, do notar os preconceitos banais das elites.

    Estas referencias livrescas do Allen sao recorrentes, mas neste caso e' enganador o paralelo: a personagem do Crime e Castigo nada tem em comum com o jovem tenista do Match Point. Alias sao opostos. A loucura de Raskolnikov e' de culpa, mas a de Wilton e' sobretudo a dor da duvida e o medo de perder o seu novo estatuto social. O filme termina apos o crime, o livro comeca com o crime.

    Ah! E a sexualidade, tanta sexualidade que chatice! Os olhares languidos de labios inchados e seios erectos, pagina central de revista de moda, ou anuncio de perfume. Luxuria sem personalidade.

    O unico merito que lhe vejo e' escolher um fim amoral. O realizador nao castiga o anti-heroi e deixa-nos na duvida se o castigo para este crime e' devido.

     
  • At 2:37 da tarde, Blogger Ricardo said…

    A. Cabral,

    Sobre a qualidade do filme vou deixar isso na subjectividade dos nossos gostos! Quero só referir que não sei se o filme alguma vez teve a pretensão de fazer humor! Associamos sempre Allen a filmes com humor mas este não é o caso.

    Sobre o paralelo entre o livro e o filme eu referi, no texto, que a culpa, no filme, tem várias fases. Acrescentei que a reacção da personagem do filme é contrária à reacção da personagem do livro. Mas o tema não deixa de ser comum, ou seja, a obsessão e a culpa. Não deixa de ser verdade, porém, que "O filme termina apos o crime, o livro comeca com o crime."

    Não achei as personagens caricaturais, apenas algo alheadas do mundo em que vivem. E eu conheço algumas pessoas assim, envoltas no conforto da distância aos problemas reais.

    A sexualidade, sem dúvida, perde com a falta de maturidade de Scarlett para interpretar este género de mulher fatal. Mas também não envergonha ninguém!

    Não acho que o final do filme deixe-nos com a ideia de que o anti herói não deva ser castigado. Acho até que esta é a maior subversão em relação ao livro, este ser pragmático até ao fim. Porque no livro é a culpa que leva ao castigo e não é, também, a polícia que o faz. Mas no contexto das personagens deste filme acho que seria irreal um fim como o sugerido no livro.

    Abraço e obrigado pela opinião,

     
  • At 2:46 da tarde, Blogger A. Cabral said…

    Numa historia moral quando o criminoso sai impune, sanciona-se que o crime e' ilibavel.

    O retrato da sociedade inglesa, a sua casta upper class, e' caricatural, a minha autoridade para esta tao forte afirmacao vem do publico ingles. Para este o enredo com os seus lugares comuns sobre a elite inglesa foi comico.

    Mas diras com razao que outras leituras, que nao a inglesa, sao possiveis: que nessas nao e tao caricatural, e que nessas nao e tao comico... So' acho que nao e' so' uma questao de gostos. Gostos afinal e' o que mais devotamente discutimos.

    Abraco,

     
  • At 3:02 da tarde, Blogger Ricardo said…

    A. Cabral,

    De facto não conheço a "upper class" londrina nem li as reações do público inglês. Baseei-me somente em pessoas, que mesmo não pertencendo a nenhuma classe alta, vivem neste mundo numa espécie de transe. Olham para as notícias nos jornais como algo chocante mas distante. Assustam-se com o mundo que as rodeia e, por isso, constroem um à parte!

    Eu não disse que o fim não era amoral mas sim que a personagem merecia, mesmo aos olhos do público, um castigo. Mas, tal como a personagem do livro, só ele podia tornar numa realidade esse castigo.

    Realmente o filme tem muitos pontos de discussão para além dos gostos.

    Abraço,

     
  • At 11:35 da manhã, Blogger gonn1000 said…

    Concordo, também acho que é o melhor do Allen em muitos anos. Ele vive!!! :)

     
  • At 12:31 da manhã, Blogger Alien David Sousa said…

    Oi Ricardo, o Pedro Oliveira recomendou-me o teu Blog. Rasgou-te um grande elogio. Isto tudo porque tenho um texto no meu Blog sobre o Match Point. Uma visão se calhar muito à flor da pele. Enfim, li o teu texto e, claro que os promenores a que te referes,não me passaram despercebidos. Resumindo: gostei.
    Como vens recomendado pelo Pedro, já estás nos meus favorites, para vir com mais calma espreitar.

    Fica bem

     

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