829. Tópicos Políticos
"Acreditamos, como Adam Smith, que o homem é levado, por uma mão invisível, a apoiar um objectivo que não fazia parte das suas intenções. Mas esta mão invisível, longe de constituir um vazio de regras é o máximo da regra, a suprema ordem, a ordem espontaneamente criada pela autonomia ética do homem, onde se mistura a liberdade natural com a justiça perfeita.
Porque existe um princípio da simpatia: o esforço uniforme, constante e ininterrupto de cada homem para melhorar a sua condição que leva o homem a obter a aprovação dos outros homens. Aliás, o individuo só se conhece a si mesmo pelo juízo que faz do outro e daquele que esse outro faz dele, o tal homem com o profundo sentido do animal de trocas, que é o cerne da sociedade."
José Adelino Maltez, Tópicos Políticos
Encontrei este blogue - Tópicos Políticos - por mero acaso, ou seja, através duma pesquisa no google sobre um tema económico. Não resisto a comentar este texto.
Uma das coisas que mais admiro na economia como ciência é conseguir ser simultaneamente uma ciência que tenta racionalizar a sociedade através de ponderações matemáticas especulativas do comportamento do homem e, repito, ao mesmo tempo, ser uma ciência que, muitas vezes, se confunde com a filosofia. E o estudo do homem, como um ser dotado de comportamentos imprevisíveis, e do seu papel na sociedade acaba por gerar teorias económicas para todos os gostos.
Assim se alguém acredita no homem e no seu altruísmo inato defende um determinado modelo de sociedade - e por arrasto um modelo económico - e se acredita no seu egoísmo inato defende outro modelo económico. O que é brilhante em Adam Smith é este tentar idealizar uma teoria que, ao mesmo tempo, tem como motor a natureza que acredita ser a do homem - o seu egoísmo - e acreditar, simultaneamente, que há uma mão invisível que leva a que o egoísmo promova o interesse da sociedade. É uma forma de altruísmo invisível.
A génese do liberalismo - o liberalismo clássico - não está, de facto, desprovida dum sentido de humanismo mas defende que o Estado não deveria tomar posição no funcionamento livre do mercado. Utilizando as palavras do professor José Adelino Maltez "esta mão invisível, longe de constituir um vazio de regras é o máximo da regra, a suprema ordem, a ordem espontaneamente criada pela autonomia ética do homem, onde se mistura a liberdade natural com a justiça perfeita". Não acredito que o homem, encarado de forma individual, sem a intervenção do Estado, seja capaz de atingir esta ordem espontânea. Acredito sim que o homem criou as sociedades para combater a sua própria natureza - apesar de muitas vezes as sociedades actuarem contra o seu interesse individual e, por vezes, colectivo - e que o Estado na sua vertente interventiva - não estou a falar de planificação mas duma postura correctiva e reguladora - é o expoente máximo do mecanismo que o homem criou para equilibrar a sua natureza com o interesse colectivo que, no fundo, ajuda a alcançar o interesse individual. O Estado, se encararmos tudo isto de forma obliqua, acaba, no fundo, por ser a representação do tal altruísmo invisível que falava anteriormente e o homem, ao criar esta estrutura, prova assim que é capaz de ser altruísta - mesmo que por razões egoístas como Smith defendia - mas através dum método completamente diferente do que o método que Smith advogava.
Basta encarar o indivíduo ou a empresa e o seu comportamento individual para percebermos que a tendência natural do funcionamento duma sociedade sem correcção - o que é uma intervenção mais lata do que a simples regulação - pode servir para agravar as desigualdades (regular sujeita algo a regras e corrigir é uma intervenção para rectificar ou melhorar algo). E uma sociedade sem coesão social é uma sociedade que não gera riqueza. Uma das funções do Estado é redistribuir a riqueza gerada e um dos motivos dessa função é a tal coesão social. Acredito, sempre acreditei, que só é possível gerar riqueza se existirem mecanismos que atenuem o descontentamento social. E o Estado só actua via redistribuição porque o sistema de mercado não consegue, de forma espontânea, garantir essa coesão social.
Tomemos como exemplo um sector, o bancário, e vamos confrontar o seu comportamento com o interesse colectivo. É evidente que um banco facilita as trocas, facilita a gestão a longo prazo duma vida e desempenha uma importante tarefa na criação de riqueza. O motor do desenvolvimento da actividade bancária é a obtenção de lucro, ou seja, voltamos ao conceito do egoísmo. O que acontece é que um indivíduo que tem menos capacidade para gerar lucros a um banco é prejudicado e é natural que um banco ofereça condições mais vantajosos a quem já tem mais recursos financeiros. Desta forma as comissões são cobradas, paradoxalmente, em maior proporção a quem tem menos dinheiro na conta. Adicionalmente se um indivíduo, vamos chamá-lo de pobre, pede um crédito o risco para o banco é maior e, novamente de forma paradoxal, o banco agrava o risco desse indivíduo ao oferecer-lhe um spread mais desfavorável do que oferece a um indivíduo que vamos chamar de rico. Assim, na sua natureza, um banco agrava a diferença entre o indivíduo pobre - que paga comissões e taxas mais altas - e o indivíduo rico. Será o mercado capaz, sem interferência do Estado, pela mera interacção de indivíduos, pela "autonomia ética do homem", de actuar no sentido de melhorar a coesão social? Ao contrário do professor José Adelino Maltez não acredito na "ordem espontaneamente criada pela autonomia ética do homem".
Prefiro acreditar que o Estado não é um mero regulador da actividade económica - o que hoje em dia já é consensual até entre os liberais moderados - mas também tem um forte papel de corrector. Por isso defendo que a economia de mercado tem que dar as mãos a um Estado forte e isto não é não acreditar no homem mas sim que o homem criou os Estados para potenciar da melhor forma a sua própria natureza. Por isso o que me afasta de Adam Smith é que, simplesmente, eu acredito que a "mão invisível" surge na forma do Estado e não o resultado dum sentido ético individual do homem. Note-se que o Estado é uma criação do homem e, por isso, acredito que este é capaz de gerar altruísmo e só discordo - de Adam Smith - do modo escolhido para atingir essa ordem.
7 Comments:
At 1:53 da manhã, Unknown said…
Caro Ricardo,
O problema do mercado é que ele ao fim de um certo tempo suicida-se.
Isto é, várias empresas competem entre si e, cedo ou tarde, uma delas, pelo menos, começa a ganhar mais peso e acaba destruindo as outras. Aí acaba-se a concorrência e entramos numa situação de monopólio.
Para evitar isto arranjaram-se as leis anti trust. Estas leis são a própria negação do mercado.
Uma empresa é incitada a concorrer desenfreadamente para ganhar mercado às outras. Enquanto não ganha ou ganha pouco, tudo bem, mas se é eficiente e ganha tudo, horror, cometeu um crime!
O mesmo com o cartel. A lógica leva a que eu tenha todas as vantagens em fazer alianças pontuais com alguns dos meus concorrentes. Fixar preços, por exemplo.
Mas isto não, isto é cartel e cartel é crime.
Em que é que ficamos? Ganhar cota de mercado é desejável ou é crime? Ou só é desejável enquanto não o conseguimos fazer?
Quanto á economia...
Para falar com toda a franqueza a mim, que tenho formação em matemática, acho muitas vezes chocantes os textos de economia. Utilizam a matemática de uma forma totalmente absurda.
Por exemplo, nunca vi nenhum economista saber o que é que fosse de teoria dos erros e, portanto, expõem-se ao ridículo de utilizar muitas vezes números totalmente absurdos.
Quando o Dr. Vitor Constâncio calculou que o deficit do estado seria uma percentagem até às centésimas do ponto percentual só mostrou que de matemática não percebe nada, nadinha.
Se a memória não me falha as receitas e despesas do Estado andam entre os 60 e os 70 milhares de milhões de Euros e o deficit (diferença entre a receita e a despesa pelos 4 ou 5 mil milhões de Euros.
Prever este deficit como uma percentagem da receita até á centesima de ponto percentual é prevê-lo com um erro inferir ao meio milhão de Euros! É totalmente ridículo!
É como se uma família que tivesse uma receita anual de 40.000 euros conseguisse fazer uma previsão das despesas que íría ter durante o próximo ano com um erro inferior a 4 (sim, quatro) Euros!
Um abraço
At 1:05 da tarde, Bruno Gouveia Gonçalves said…
Muito bom post. Também já visitei o blog, no decurso de uma pesquisa no google.
Quanto à "mão invisível", vejo-a mais como Smith...
Abraço
At 2:19 da tarde, José Fernandes dos Santos said…
Também acho que devemos defender "a mão invisível" de Adam Smith portas adentro, se é que ela existe.
Tenho mais facilidade em aceitar "a mão invisível" de Jorge Luis Borges ...
Um abraço,
José
At 7:25 da tarde, Ricardo said…
Caro Raio,
Muito interessante a tua dupla dissertação.
1. Quanto ao sistema de mercado onde o preço é o encontro entre a oferta e a procura existem de facto tendências de longo prazo que fazem com que o sistema não seja um processo natural de desenvolvimento. Há um conjunto de pressões para que, sem correcção, o sistema seja nocivo.
Por isso defendo um Estado forte que consiga um equilíbrio entre não estrangular o mercado (deixá-lo funcionar) e não deixar que as leis de mercado tendam para situações nocivas para os cidadãos/consumidores.
Por isso insisto tantas vezes que nenhuma teoria económica é válida se não tiver em consideração o contexto. O que é bom em certas situações não é noutras e por isso volto a sublinhar o contexto e aí a intervenção do Estado é perfeitamente justificada de forma maleável e dinâmica.
Basta olhar para o rumo da globalização para perceber a falta que o Estado faz na dinâmica do mercado.
2. A economia não é uma ciência exacta. É, como bem sabes, uma ciência social que usa a matemática para padronizar o comportamento dos agentes. Por isso é natural que hajam muitas teorias e muita filosofia porque tudo o que é social é incerto.
Compreendo a tua revolta quanto a alguns erros matemáticos de palmatória de alguns economistas mas não te esqueças que é a partir da análise dos comportamentos, por mais subjectiva e sujeita a erros, que o mundo avança. Cada aproximação à realidade, mesmo que nunca exacta como noutras ciências, permite alcançar formas mais complexas de organização. O estudo da viabilidade económica de cada produto, estrutura, investigação e por aí fora permitiu e permite que as sociedades cresçam e obtenham conhecimentos úteis em todas as áreas (medicina, engenharia e até na matemática). Costumo dar o exemplo do cálculo da viabilidade da distribuição de água onde a parte fixa e a parte variável da factura obedecem a cálculos económicos de viabilidade que permitem que, em conjunto com quem projectou e executou a instalação física da rede (que também foi alvo, nesta fase, de planos de viabilidade), todos (ou quase todos) tenham acesso a água.
Por isso a economia, apesar de discutível, é uma peça chave para o desenvolvimento.
Abraço,
At 7:31 da tarde, Ricardo said…
Bruno e JFS,
Todas as visões sobre o mundo e sobre o homem são válidas. Só é pena, mesmo que compreensívelmente, que não tenham aproveitado a ocasião para defenderem o vosso ponto de vista de forma mais alargada. É que tenho dificuldade em atingir a sustentação a longo prazo duma sociedade baseada na "ordem espontaneamente criada pela autonomia ética do homem".
Abraço(s)
At 11:18 da tarde, Anónimo said…
Olá Ricardo.
Tenho estado muito ocupado a fazer duas coisas:
- trabalhar como uma burra cigana para me livrar de um falência;
- a tentar escrever um livrinho memoralista, que dá uma trabalheira que nunca imaginei ser tão enorme.
Voltando ao A.S. :
-Era um professor do Liceu;
-Era Protestante, dos antigos;
Como Marx tentou entender os tempos anteriores, para explicar o seu tempo.
- Acreditava que a mais-valia seria aceitada por todos, ie, os custos mais o lucro "moralmente aceitável": tudo, 30%.
Se tivesse ao seu lado um empresário têxtil predador mas curioso, e que o sustentava, nunca inventaria a Utopia da Felicidade capitalista da " mão invisivel", que é coisa que não existe absolutamente. Uma OPA faz-se com a tal mão, ou com uma aliança com o poder poliico, minimo, mas regulador? Quando surgiu a noticia que a Pepsi queria comprar a Danone como é que reagiu a C.E. ?
Quando as motos japonesas, e a Komatsu desafiou a Cat como é que Reagan respondeu?
Alguém pode comprar a NASA?
Somos uns Tótos, o nosso capitalismo é um absurdo.
At 7:48 da tarde, Fernando said…
Viva Ricardo,
Vi agora numa passagem pelo "Cabalas" que o Filho de Abril fêz dois anos no dia 17 de Abril. Não me tinha apercebido. Vão os parabéns atrasados. Dois anos é obra quando... efeito com uma regularidade impressionante. Já o tinha dito e reafirmo aqui: Este é dos melhores blogues que conheço e dos mais mais sérios da Blogosfera. Aqui os temas são tratados com seriedade e competência e sem demagogias. Eu sou um visitante assíduo, com muito gosto.
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