Filho do 25 de Abril

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segunda-feira, maio 15, 2006

844. O Mito da Meritocracia

O Bruno Gonçalves - do blogue Bodegas - aconselhou a leitura dum texto de António Costa Amaral (AA) - do blogue A Arte da Fuga - publicado hoje no "Dia D" - suplemento do jornal Público - com o título "O mito da meritocracia"!

Eu também aconselho a leitura até porque partilho de muitas das ideias e dos diagnósticos que AA desenvolve em relação à Administração Pública (AP) com a excepção, natural, do corolário. A solução, e não é uma surpresa, defendida pelo AA é a "(...) abertura aos privados dos serviços estatais" e, considerando isso insuficiente, defende que a "sobrevivência das hierarquias estatais deve passar a depender exclusivamente de taxas e preços cobrados aos utentes, em verdadeira concorrência com os privados".

Vamos por partes:


1. Diagnóstico

Concordo que o actual sistema de avaliações não funciona até porque a "meritocracia" nunca chegou a ser implementada na Função Pública. As progressões automáticas só foram idealizadas como um complemento às auditorias externas aos serviços e, como já explicou Miguel Cadilhe, o actual Presidente da República desistiu da parte mais importante da reforma da AP e só deixou as progressões automáticas. As tais regras rígidas de avaliação - que o AA explora no texto - não são mais do que um - mais recente - sistema injusto para compensar um sistema injusto que já existia, ou seja, como todos os funcionários tinham excelentes classificações agora há quotas de boas classificações, como se os bons trabalhadores estivessem distribuídos de forma homogénea entre serviços.

Mas antes que se dê o exemplo do mercado privado advirto que a maior parte das empresas também tem distribuídos, de forma homogénea, os seus bons trabalhadores. E, tal como na função pública, o tal mérito depende da relação pessoal com os seus superiores hierárquicos e com a proximidade (ligado ao grau de necessidade duma boa classificação) duma promoção. Em resumo diria que a "meritocracia" nunca foi introduzida no sector público em Portugal e que, mesmo no sector privado, funciona de forma deficiente.


2. Soluções propostas no artigo

a) É preciso definir, a priori, quais são os serviços que o Estado deve ou não prestar em exclusividade e aí já vou ter, concerteza, uma opinião diferente do AA. Após esta análise - que concerteza não é consensual - se há serviços que não necessitam de exclusividade defendo que devem ser entregues aos privados e não concordo com a ideia de "verdadeira concorrência com os privados" (as excepções são a educação e a saúde em que entra um critério que não cabe na iniciativa privada - o direito a que seja universal - e aí admito concorrência, ou melhor, complementaridade). Aqui reside a principal diferença de opinião porque eu considero que o Estado está muito próximo do seu tamanho ideal - quando alienar a totalidade do sector empresarial - e que todo o resto deve ser reformado com o critério da satisfação do cidadão (que neste caso é simultaneamente o cliente) e que essa reforma também depende, e muito, do grau de exigência do cidadão/cliente;

b) Não percebo porque é que a função pública necessita de se abrir aos privados para poder ter como foco o "cliente" ou as "necessidades das pessoas". Se um serviço é da competência do Estado o cliente - que aqui surge no duplo papel cliente/cidadão - deve ter mecanismos para avaliar a qualidade do serviço, ou seja, como cliente pode dar indicações vinculativas do seu grau de satisfação e isso deve ter consequências na avaliação do funcionário e do serviço e, como cidadão, deve utilizar não só o seu direito de voto mas também os seus outros poderes de cidadania para avaliar o serviço público. Concordo que a cidadania não está tão explorada como os direitos do consumidor mas não vejo razões para que não passe a estar. Costumo dizer que só porque um determinado Estado (aqui mais direccionado para a sua vertente de serviços) funciona mal isso não é razão suficiente para defender que seja entregue (parcialmente) à iniciativa privada mas sim que deve ser exigido a este que seja mais eficiente. O contrário também é válido, ou seja, se uma empresa ou sector funcionam mal isso não deve ser suficiente para que se defenda a nacionalização;

c) Defendi, nas alíneas anteriores, que tenho uma noção de Estado que não é minimalista e que não defendo a concorrência nos seus serviços exclusivos - nos outros defendo a privatização - mas não quero terminar sem sublinhar uma ideia que tenho defendido no blogue, ou seja, que também não sou defensor de parcerias público/privado nestes serviços. Considero que, por exemplo, o outsourcing não tem trazido qualquer tipo de vantagens à AP. Ver textos aqui e aqui sobre este tema.


Em resumo diria que a AP não funciona mal porque é um "monopólio" porque, num sentido literal, a componente "cidadão" - associada à noção de "cliente" - pode e deve funcionar como um pêndulo para a modificação da AP conforme as "necessidades das pessoas". Adicionalmente considero que há serviços que não são concorrenciais pela sua natureza - daí serem públicos (porque causam externalidades, porque incorporam decisões que influenciam o todo, porque são não rivais, porque não podemos excluir ninguém do seu consumo independentemente dos preços, porque a quantidade óptima não é reflectida de forma satisfatória nos preços, entre outros) - e que a resolução dos problemas da AP não passa pela sua abertura aos privados.

Mas eu e o AA estamos de acordo num ponto, ou seja, a AP, tal como está, não agrada nem a gregos nem a troianos. A solução, claro que na minha opinião, é que é bem diferente da que é defendida pelo AA. Não explorei convenientemente, neste texto, o que defendo para a AP - esse assunto já foi alvo de reflexão em inúmenos textos deste blogue - mas deixei claro, mais uma vez, que não sou adepto duma liberalização do Estado porque este, per si, tem características muito diferentes duma empresa integrada num mercado e, da mesma forma que o AA desconfia dos critérios privados aplicados à "meritocracia" da AP (uma "mímica infeliz", segundo as suas palavras), eu também desconfio da aplicação desses critérios duma forma mais lata a um Estado que tem características muito diferentes duma empresa.


Tópicos Relacionados:
O Sector Público (1) (2) (3)
Administração Pública
O outsourcing no Estado

1 Comments:

  • At 1:06 da tarde, Blogger Out of Time said…

    O "tamanho" do Estado na economia é um dado perfeitamente ideologico pelo que nem quero entrar por aí. O que sinto é que a falta de cidadania generalizada faz com que os critérios de exigência em relação aos serviços públicos seja baixissima. A própria formula de contratação dos funcionarios ainda é muitissimo permeavel a factores hexogenos (famosa cunha) associados a baixos salários e desprestigio da função faz com que se encare a profissão pública como um "emprego" pouco motivante. O desvio da coisa pública para a privada somente vem alterar esta mentalidade, sendo que a qualidade do serviço se pode manter igual ou até pior. O mérito como factor de referencia deve ser quantificado e esse é um dos problemas encontrados em actividades prestadas pela coisa publica que tendencialmente não são mensuraveis em termos de lucros. Concordo que se deva premiar o mérito, mas devemos estar preparados para ser "criticos" em relação ao serviço prestado e para assumir que temos a "nossa" voz de "clientes" é escutada.

     

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