Hoje discute-se muito as funções do Estado e, consequentemente, quais são os seus limites. Discute-se, porventura, que o Estado é ineficiente e que o sector privado é capaz de incrementar mais eficiência e inovação. Começamos pelo sector empresarial - e bem - e agora a discussão é mais alargada, ou seja, discute-se se a Segurança Social e as opções de Saúde, por uma questão de justiça e eficiência, não devem ser entregues ao sector privado.
Eu não quero excluir o sector privado das áreas sociais e do sector da saúde mas continuo a defender que o Estado tem um papel importante na distribuição dos riscos duma forma que o sector privado não consegue abranger, ou seja, a própria natureza do sector privado, não consegue, para já, garantir uma distribuição dos riscos e a uma universalidade comparável à actual.
É difícil exemplificar esta linha de pensamento num exercício exemplificativo sem pecar por uma excessiva simplificação da realidade e sem exagerar nas generalizações mas, mesmo assim, vou correr esse risco.
Imaginemos dumas pessoas nascidas no mesmo dia e no mesmo ano.
Pessoa A: Ganha, em média, 1000€ por mês. Contribui para o Serviço Nacional de Saúde, num período de 20 anos, 20000€.
Pessoa B: Ganha, em média, 2000€ por mês. No mesmo período, à mesma taxa, contribuiu com 40000€ para o Serviço Nacional de Saúde.
Aparentemente há aqui uma primeira desigualdade, ou seja, ambas têm direito ao mesmo serviço de saúde e uma contribui no dobro. Mas ninguém pode garantir, à partida, que a Pessoa B vai sair prejudicada porque, por razões diversas, pode até custar ao SNS muito mais do que contribuiu e pode até acontecer que a Pessoa A, por nunca ter tido uma doença grave, no fim, tenha um saldo negativo (pagou mais do que usufruiu). Até podiam receber o mesmo e contribuído o mesmo e haver na mesma uma que paga parte do infortúnio da outra. A pessoa A, paradoxalmente, acaba por ter razões de queixa, ou seja, no fim perdeu recursos que podia ter investido noutro lado. O que aconteceu foi uma distribuição dos riscos associados à saúde.
Num regime mais liberal onde cada um opta por diferentes seguros de saúde privados e não há uma contribuição obrigatória para o SNS podemos dizer, à partida, que também há distribuição de riscos. Ambos podiam pagar o mesmo pelo mesmo seguro, independentemente do vencimento, e tinham acesso ao mesmo serviço. Os tratamentos até podiam ser melhores e a menores custos. Mas para existirem seguros rentáveis - se não fossem não podiam ser privados - tinham que haver limites que não existem hoje, ou seja, todos tinham que ter capacidade para os ter (mesmo os desempregados e os remediados), os seguros tinham que ter tectos de cobertura anuais e certas doenças ou tratamentos (por serem raros ou demasiado dispendiosos) não podiam estar incluídos. Este é o drama actual dos países com sistemas de saúde mais liberais, ou seja, têm que ter critérios de exclusão ao acesso mais apertados para garantirem a atractividade ao sector privado. Comparativamente há maior liberdade de escolha e há mais justiça na proporção entre contribuição e acesso aos serviços mas o sistema fica menos universal e a distribuição dos riscos de saúde é menor. Talvez a solução esteja no meio termo: democratizar o acesso aos seguros de saúde privados mantendo o SNS.
Mas o exemplo também é válido para a Segurança Social.
Pessoa C: Teve necessidade de recorrer com frequência ao subsídio de baixa e ficou, aos 35 anos, com invalidez permanente. Morreu aos 80 anos. Ceteris Paribus.
Pessoa D: Raramente ficou de baixa. Nunca ficou desempregado. Morreu aos 45 anos. Ceteris Paribus.
A Pessoa D tem claras razões de queixa - ainda mais se desconfiasse que ia morrer com 45 anos - do sistema público. Podia ter feito, em total liberdade, as suas opções de reforma no sector privado e vivido muito melhor e ainda deixava à sua esposa uma quantia muito mais elevada. A Pessoa C, por outro lado, não tem razões de queixa, apesar de ter recebido uma reforma baixa, porque o saldo global é positivo. A Pessoa C beneficiou do saldo negativo da Pessoa D. Num sistema mais liberal, a Pessoa D pagava e recebia montantes mais proporcionais ao seu percurso de vida. É injusto para a Pessoa D até porque só se vive uma vez.
Esperem. Esqueçam o que acabei de dizer. Enganei-me. Troquei a identidade das pessoas. Afinal foi a Pessoa D que beneficiou do saldo negativo da Pessoa C.
Esta ilustração não pretende ter uma moral da história. O que interessa saber é até que ponto queremos fazer distribuição dos riscos (e quais riscos devemos englobar). No sistema actual há uma determinada distribuição de riscos - relacionados com a condição humana e com a vida em sociedade - e podemos discutir a sua dimensão (até porque do sistema público vivem muitos "falsos" doentes, "falsos" pobres e "falsos" desempregados) mas também temos que discutir se é vantajoso - até do ponto de vista económico - descer de um determinado patamar. Esta é uma escolha civilizacional e, da minha parte, não vejo vantagens em trocar a regulação e intervenção do Estado por uma regulação e intervenção do mercado, pelo menos totalmente, dada a especificidade destes problemas mas não excluo, ninguém o deve fazer, novas formas de colaboração entre o público e o privado. O problema é que as parcerias público/ privado não têm sido brilhantes - o sector público é laxista no controlo de custos e o sector privado não devia, ao atender um paciente, ter como cliente o Estado e esta combinação entre querer ganhar muito e ser ineficaz no controlo de custos tem tido maus resultados - e não é fácil encontrar um equilíbrio.
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